Anouar Benmalek

Entrevistas

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«O Filho do Povo Antigo»
"Ensurdecedor Silêncio"

 

 

Não calar. Não esquecer. Lembrar. Anouar Benmalek escritor de origem argelina com nacionalidade francesa, acérrimo defensor dos direitos humanos, fundador do Comité Argelino Contra a Tortura e matemático de formação, escreve contra o apagamento. Escreve para que a memória não se apague. Jogando com o acaso e partindo da pesquisa de todos os coniventes silêncios da História face ao genocídio dos aborígenes na Tasmânia, conta o percurso de Tridarir, o último dos descentes do povo que sabia ainda ler os sonhos e ouvir as vozes da floresta.

Fascinado pelos insondáveis segredos do acaso, engendra o encontro de Lislei, Kader e Tridarir no seu último romance. Ela é deportada para a Nova Caledónia por pertencer à Comuna Francesa, Kader é feito prisioneiro durante a revolta das tribos sarianas e Tridarir assiste ao massacre dos seus pais pelos ingleses. Surpreendido pelo quase apagamento dos nomes e da memória sobre todos os que morreram em pleno século XIX face à crueldade dos colonizadores, o autor, natural de Casablanca, herdeiro, também ele, de um passado entre mestiçagens e injustiças, altera o silêncio em denúncia. Para além da regular colaboração em jornais e publicações e das aulas na Universidade de Ciências e Técnicas de Alger, obtém, em 1998, o Prémio Rachid Minouni por «L’amants désunis». Em «O Filho do Povo Antigo» volta à temática da guerra, da crueldade mas também ao domínio do amor e da tolerância.

Círculo de Leitores online - Qual a actualidade do tema da colonização?
Anouar Benmalek - Não pretendia falar da colonização enquanto fenómeno histórico. Queria apenas demonstrar como a História se apropria das pessoas normais e as esmaga. Tenho sempre a impressão que ao banalizar-se o termo “colonização” para esse período específico da história se acaba por diminuir o crime cometido contra as vítimas.
As pessoas no romance são pessoas normais, quer dizer, não são indivíduos “exóticos”, não passam por representantes de um grupo, perdendo também eles parte da sua humanidade, são seres como você ou como eu, com as mesmas qualidades e os mesmos defeitos, capazes de amar, de odiar, de trair, de se aborrecerem, de se apaixonarem, de serem corajosos, de serem cobardes, em suma o homo sapiens banal que povoa o nosso planeta. Particularizar demasiado, “socializar” demasiado um crime contra uma parte da humanidade, sobretudo (como acontece com frequência) quando esse grupo pertence ao Sul, acaba, na prática, por se converter num diminuir do sucedido.
CLonline – Mesmo apagados do registo oficial da História, quase esquecidos, com este livro parece dar voz às vítimas da intolerância colonialista perpetuada nos finais do século XIX. O que levou ao encadear de três conflitos aparentemente distintos: a guerra das tribos sarianas contra os franceses, a deportação dos elementos da Comuna de Paris e o massacre dos aborígenes da Tasmânia?

AB - Foi, na verdade, o acaso que juntou no meu romance essas personagens que nada, à partida, fazia prever que se encontrariam. Durante algum tempo senti-me fascinado por uma história não muito conhecida: a deportação colectiva para a Nova Caledónia dos insurrectos algerianos da revolta de 1870 e dos membros da Comuna parisiense. A descrição, contrastante, da infelicidade de ambos os povos era o tema do meu romance. Tinha descoberto que assim que os membros da Comuna e os revoltosos argelinos chegaram à Nova Caledónia encontraram a “Revolta Canaque”. Ora o primeiro gesto desses deportados foi, inesperadamente, de solidariedade com o exército francês para reprimir os Canaques! Essa contradição entre o amor pela sua própria liberdade e o desprezo total pela liberdade dos outros era o ponto forte do meu livro. Contudo, no decurso da pesquisa a que me dediquei para melhor compreender esse período, acabei por perceber que alguns dos deportados conseguiram evadir-se para a Austrália em condições extraordinárias já que o oceano Pacífico (como o seu nome não indica!) era um oceano terrível. Nada sabia da história da Austrália pelo que comecei a ler sistematicamente tudo o que encontrava sobre essa época e foi uma frase, num grande livro sobre a Austrália, e, mais precisamente, uma vírgula que decidiram o destino do meu romance. Posso citar: “ O lobo da tasmânia desapareceu no ano de 1875, ao mesmo tempo que o último aborígene da ilha da Tâsmania, na sequência dos massacres perpetuados pelos colonos ingleses.”

Conline – A frase chocou-o?

AB - Perguntei-me: este livro fala-me de um genocídio, e se se trata de um genocídio, como ousam mencioná-lo como um incidente, entre vírgulas, como se o desaparecimento do lobo fosse mais importante que o desaparecimento de um povo?
Comecei então a procurar nas publicações da época tudo o que dissesse respeito ao massacre dos aborígenes da Tasmânia. Devo aqui prestar homenagem aos anglo-saxões: eles foram perfeitos carniceiros e foram também excelentes burocratas. Os colonos limparam tudo: os massacres, as datas, o nome das pessoas mortas. Assaltou-me pois uma indignação: se dispomos de tantos documentos, como é possível que o genocídio dessas pessoas não figure no “menu” da nossa memória comum? O sofrimento dessas mulheres, desses homens, dessas crianças não é considerado digno de compaixão, pelo menos ao nível da memória como, por exemplo, o genocídio dos judeus, dos ciganos e dos arménios? Coloquei-me ainda a questão: e se eu tivesse sido aborígene e tivesse sido assassinado por duas vezes? Da primeira vez pelo fogo, pela espingarda e pelo envenenamento, da segunda vez pelo desprezo e pelo esquecimento do todos os meus irmãos...
Foi assim que o tema do meu livro mudou.

Inumanidade e esperança

CLonline - Ao cruzar as histórias de Lislei (francesa), Kader (argelino) e de Tridarir, o último descendente do seu povo, parece recontar a História a partir do olhar dos espoliados, dos vencidos. Mas como dar voz aos que nunca tiverem oportunidade para contar os factos a partir do seu ponto de vista? A escrita de «O Filho do Povo Antigo» é um trabalho de imaginação ou de procura desse silêncio impostos pelos “vencedores”?
AB - Este livro nasceu de uma estupefacta interrogação sobre um ponto particular da História. É certamente um trabalho de ficção. Como viver o indizível: ser o último de um povo, ser vítima, ser testemunha do inimaginável... O romance, que não idealiza as personagens, mesmo as que vivem a condição de vítimas absolutas e é, talvez, o meio menos perverso para tentar compreender a medonha experiência do genocídio. É também a esperança. Apesar de tudo o amor entre as minhas três personagens acaba por recriar uma espécie de humanidade entre os três - ao contrário e contra a maldade que os rodeia.
CLonline - Precisamente... a guerra, a crueldade, a injustiça, as diferenças culturais, mas também o amor, atravessam todos os seus livros. Em que medida este livro continua e varia a partir desses temas?

AB - Não parto de nenhum a priori quando começo a escrever um livro. Pretendo falar de pessoas mas não me limito a um único contexto. Se abrirmos os olhos, se considerarmos que pertencemos à terra, se pensarmos que todos pertencemos à mesma espécie que o resto da humanidade, o contexto é sempre terrível, cruel, implacável. Seja em que época for.
CLonline - A denúncia pode ser uma forma de justiça mesmo se o que denuncia não pode já ser alterado?

AB - Não me atribuo o papel de justiceiro. Simplesmente não posso, por vezes, calar-me.
CLonline - Procurei, confesso, uma qualquer redenção até ao final mas o que se mantém ao longo do livro, se me permite, é a ideia de uma “felicidade roubada” e o gesto irreparável de massacre do povo que não sabendo produzir o fogo, sabia ainda ler os sonhos. A quem aponta o dedo? Melhor, pretende apontar culpados ou pacificar a injustiça?

AB - Falar. Mesmo que isso pareça nada mudar: talvez seja esse o minímo de solidariedade que devemos àqueles a que a maldade esmagou.
CLonline - As descrições de tortura e crueldade são tão fortes e praticadas com tal ligeireza pelos mesmos homens que falam com carinho dos seus próprios filhos e das suas mulheres... acaba por ser sempre supreendente essa ambiguidade da natureza humana... Uma humanidade habitada pela sua própria inumanidade?

AB - O homem é assim: pode adorar os seus próprios filhos e matar sem remorso os filhos dos outros. É o mistério da nossa humanidade, o estar sempre sob a vigia da inumanidade.

A capacidade de amar

CLonline - Quase desfeitos pelo sofrimento, Lislei e Kader hipotecam a sua dignidade e a sua moralidade para recuperarem a liberdade perdida. Mas ao decidirem salvar o pequeno rapaz negro parecem retroceder caminho. Eles salvam, afinal, Trinadir ou a sua quase perdida capacidade de amar?

AB - Amar Trinadir é, para Lislei e Kader, o mesmo que recuperar um lugar na humanidade. E a humanidade prova-se, vive-se pela capacidade de amar sem esperar retribuição. A capacidade de amar Tridarir é o maior presente que se podia atribuir a Kader e Lislei.

CLonline – Quer Kader, quer Trinadir estão ligados a uma cultura de origem mas aprendem a língua do “colonizador” o que lhes parece dar um pouco dessa outra cultura, de um outro olhar e sentir. Isso é uma vantagem?

AB - Mergulhar na cultura dos outros, sem abandonar a sua, tomar de uns e de outros, dar, é um enriquecimento extraordinário que permite comprender a grandeza da experiência humana e permite relativizar os “absolutos” de cada sociedade.

CLonline - O próprio Anouar Benmalek habita,de certa forma, entre diferenças culturais. Natural de Casablanca, argelino e francês em que medida as suas origens influenciam a sua escrita?
AB - Acautela-me contra a imbecilidade de me julgar superior aos outros e impede-me de me fechar contra a cultura dos outros. A minha mãe era marroquina, o meu pai argelino, a minha avó era suíça e era artista num circo. Tenho ainda uma antepassada mauritana que foi escrava e uma outra que era natural da Baviera. Com tudo isto, se fosse racista, seria um desespero!

CLonline - Pensa que existem diferenças inultrapassáveis entre povos?

AB - Não. Mas não são as diferenças em si que criam as guerras. Vejam-se as guerras civis onde são os irmãos que combatem entre si...
CLonline - Benmalek é também matemático. Não resisto à pergunta do “acaso”... é precisamente especialista no domínio do acaso aplicado à matemática e «O Filho do Povo Antigo» joga com a simultaneidade de sofrimentos que confluem no encontro entre os protagonistas. Qual a importância do acaso na vida dos homens?

AB - Nascemos do mais fabuloso dos acasos: o acaso amoroso. Porque razão todos os outros acontecimentos na nossa vida (bem menos fundamentais) não deveriam ser marcados por esse mesmo acaso?

CLonline - Que violências são ainda hoje praticadas em silêncio?

AB - A lista é infelizmente muito longa: os índios da Amazónia, os palestinianos, o mundo árabe, a África, o Tibete, o escândalo da fome e da doença que matam milhões face à mais geral das indiferenças, etc. E o silêncio é ensurdecedor.